Por Marcela Villar — De São Paulo
Um dos últimos atos do ministro Herman Benjamin antes de assumir a presidência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi negar um recurso da Fazenda Nacional em um caso da Gerdau que discute ágio interno. Na prática, o antigo relator manteve acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) favorável à empresa, afastando cobrança de R$ 363,2 milhões de Imposto de Renda (IRPJ) e CSLL por amortização de ágio gerado por meio de reorganizações societárias realizadas entre 2004 e 2005.
Foi o primeiro caso do tema julgado na 2ª Turma. O recurso chegou a ser pautado para julgamento no colegiado, mas foi adiado e decidido de forma monocrática por Benjamim, às vésperas de assumir o comando do STJ. O ministro não conheceu o recurso da Fazenda Nacional, ou seja, não analisou o mérito da demanda.
Havia muita expectativa do mercado sobre o desfecho, pois só existe manifestação da 1ª Turma sobre o assunto, favorável à empresa Cremer, de setembro de 2023 (REsp 2026473). Com uma decisão da 2ª Turma, haveria uma uniformização do entendimento no STJ. Porém, como o recurso não foi conhecido, há advogados que entendem que a decisão não é precedente.
O tema é relevante para a Gerdau. Existem outras ações administrativas e judiciais contra a produtora de aço envolvendo o mesmo assunto e reorganização societária. Somadas, elas podem ter impacto de R$ 7,9 bilhões em caso de perda, segundo o último balanço contábil, divulgado em julho de 2024. A companhia classifica a derrota como possível e não provisiona os valores. A jurisprudência nos TRFs tem sido favorável, indicam tributaristas.
A maioria das discussões sobre ágio interno se encerrou em 2014, com a Lei nº 12.973, que tornou expressa a vedação desse procedimento entre empresas do mesmo grupo econômico com a dedução dos valores do IRPJ e CSLL. A economia tributária é relevante, de 34% – é a soma das alíquotas dos dois tributos. Para os contribuintes, antes de 2014 não havia proibição.
Já a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) entende que a dedução não é possível, mesmo para os casos anteriores a 2014, “por não haver um terceiro independente que faça a aquisição, pagando o sobrepreço que materializa o ágio”. Em nota, a PGFN diz que sem essa terceira figura, “abre-se margem para que ocorram operações artificiais, que resultem em aproveitamento indevido do benefício fiscal”.
Para o órgão, a lei de 2014 apenas esclareceu “uma vedação que é intrínseca à natureza da operação”. Também afirma que “o ideal seria o STJ enfrentar o mérito da questão, o que ainda não foi feito”. Da decisão, cabe recurso para levar a discussão à 2ª Turma. Sobre esse ponto, a PGFN diz que “as equipes da representação judicial estão avaliando a estratégia para o trato da questão”.
Na decisão, o entendimento do ministro Herman Benjamin foi o de que a Fazenda não enfrentou todos os pontos do acórdão do TRF-4 e a argumentação não foi suficiente. “Não foi combatido o argumento que prevaleceu no voto vencedor na origem de que a proibição da amortização do ágio entre partes dependentes apenas foi positivado no ordenamento jurídico com os artigos 20 e 25 da Lei 21.973/2014, a qual foi posterior à ocorrência da reestruturação societária”, afirma.
A PGFN, acrescenta o ministro, não indicou quais dispositivos do Código Tributário Nacional (CTN) teriam sido violados. “Dessa forma, constata-se que o recurso especial está deficientemente fundamentado”, diz. Também foi analisado um recurso da Gerdau que discutia questões laterais, como ressarcimento de seguro garantia e o pagamento de honorários. Os pedidos foram negados (REsp 1988316).
Renato Silveira, sócio do Machado Associados, diz que o ágio surge quando há aquisição de um investimento pelo valor superior ao patrimônio da empresa. “Se faz a aquisição por um valor maior, acreditando que, no futuro, vai gerar resultado e compensar essa mais-valia”, explica.
A Lei nº 9.532/1997, anterior a de 2014, permitia a amortização da diferença, segundo ele. “Essa despesa era dedutível da base de cálculo do IRPJ e CSLL.” Com os novos critérios legais, a operação só pode ser deduzida se ocorrer entre empresas independentes.
Para Silveira, a decisão não forma precedente. “Hoje, a gente continua na situação de que só a 1ª Turma se manifestou sobre essa matéria”, afirma. Ele cita que existem outros quatro casos de ágio pendentes de julgamento na 2ª Turma e mais quatro na 1ª Turma do STJ.
Mauricio Bueno, sócio do HRSA Sociedade de Advogados, porém, entende que o caso Gerdau forma sim precedente, mas não “tão bom” quanto o da Cremer. “Ele não expõe o entendimento sobre o mérito, mas mesmo apreciando as questões processuais, na minha visão, indica que se e quando tiver a análise do mérito em outros casos, o entendimento deve ser favorável ao contribuinte”, diz.
A Fazenda Nacional, afirma, não atacou de forma direta o caso no recurso. “Ela quase que faz uma petição inicial de uma tese e não um recurso especial”, diz Bueno. “Não adianta a Fazenda não enfrentar a tese principal defendida pelo tribunal de origem. Eles atacam o caso, mas sustentam que a legislação deve ser interpretada de outra forma.”
O caso da Gerdau, para especialistas, é emblemático porque, quando a ação estava no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a empresa, conselheiros e advogados foram alvo da Operação Zelotes, do Ministério Público Federal (MPF), por suspeita de compra de votos no tribunal administrativo – a denúncia, porém, foi arquivada na segunda instância.
Segundo o procurador do MPF Frederico Paiva, coordenador da Operação Zelotes, o ágio interno foi o principal motivo da força-tarefa. “Começou a ser muito usado pelas empresas, que começaram a fazer essas operações de fusão para criar artificialmente o ágio interno”, afirma. Para ele, a “lei deu essa brecha para as empresas” e o Fisco “está errado mesmo em alguns casos”.
Foram mais de 120 pessoas denunciadas e mais de 20 denúncias feitas, segundo Paiva. A maioria, contudo, não foi analisada pela primeira instância ou a denúncia foi anulada pelo TRF-1, como no caso da Gerdau – que não chegou a ser julgado. O procurador ainda recorreu para o STJ, mas não teve sucesso (HC nº 1029467-75.2019.4.01.0000).
Em nota ao Valor, a Gerdau diz que “recebeu, com o respeito de sempre, a decisão do STJ que reafirma as decisões que reconheceram a legitimidade da reorganização societária do grupo”. A empresa reforça que “não existe nenhum processo penal contra a Gerdau ou seus executivos ou ex-executivos em curso relativa à Operação Zelotes”.
Também em nota, o STJ afirma que a relatoria do caso foi assumida pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, antiga presidente. Sobre a retirada de pauta e julgamento do recurso de forma monocrática, diz que “o ministro Herman não se manifesta sobre processos em andamento”.